2.4.07

O Capital contra a Democracia

Francisco de Oliveira

Do liberalismo à social-democracia: a desprivatização da democracia

Qualquer que tenha sido a transmissão da idéia de democracia dos gregos para o Ocidente que se tornava capitalista – e o colonialismo tornou-o um sistema mundial – a democracia moderna desde logo já não correspondia exatamente ao governo de todos. O caráter intrinsecamente concentrador do novo sistema propõe imediatamente uma assimetria de poder entre os cidadãos que dificilmente traduz um governo de todos. E a separação que o liberalismo operou entre o poder político e o poder econômico, revolucionária para um mundo saído do feudalismo, cria um poder privado, o econômico, cuja gestão é retirada do cidadão comum. É verdade que ainda se pode encontrar reverberações da concepção democrática da igualdade nos fundamentos do liberalismo econômico: por exemplo, a concorrência perfeita, o modelo mais resistente na história da teoria econômica – dissemos “modelo” - construiu-se sob o principio de que nenhum dos atores teria influência sobre os preços, ao ponto de ter poder de mercado suficiente para afastar os demais competidores.

Mas a compra e uso da força-de-trabalho ao bel prazer do comprador – o uso de seu valor-de-uso - constituiu-se, desde logo, numa transgressão da regra democrática da liberdade dos cidadãos, a não ser que uma delirante concepção veja exercício da liberdade nas longas e extenuantes jornadas da Inglaterra descritas por Dickens e Engels.

Assinale-se, também e preventivamente, que a convivência da democracia com o capitalismo tem sido gravemente conflituosa. Tirando o caso inglês, em que não se anota um conflito de gravidade – mesmo na II Guerra Mundial, com Londres sob bombardeio, o regime democrático logrou resistir aos não-poucos apelos autoritários, diz-se inclusive com a adesão do então Príncipe de Gales, que teria sido o rei não fosse seu casamento com a divorciada Wally Simpson- todas as demais tombaram alguma vez sob a pressão dos interesses econômicos engolfados em estratégias imperialistas. Mesmo os USA passaram pela terrível Guerra de Secessão, depois da qual a democracia norteamericana mantêm-se não sem graves problemas de baixa adesão popular. Há muitos “tiros em Columbine” que revelam a gravidade desses conflitos. A história européia, com a solene exclusão da Inglaterra já citada, mostrou a incapacidade do sistema democrático em fazer frente às conjunturas excepcionalmente tensas.

A democracia é o sistema de governo da maioria, assegurados os direitos da minoria, mesmo porque na Grécia de Péricles essas posições podiam mudar, dependendo do assunto tratado, e não convinha ofender os direitos dos cidadãos das minorias, porque isto representaria uma desqualificação para participarem do governo da cidadania. O sistema foi concebido exatamente na perspectiva de mudanças de posições, sem o que não faria o menor sentido: congeladas, fixas e imutáveis maioria e minorias, dificilmente se poderia falar em democracia. A democracia moderna colocou no lugar dessas mudanças a rotatividade dos mandatos, para criar a possibilidade de novas maiorias e minorias, e a alternância no poder.

A nova estruturação da sociedade em classes virtualmente impede as mudanças de lugares entre maiorias e minorias, porque cria lugares fixos na estrutura social cujos interesses dificilmente podem formatar-se em consensos habermasianos, isto é, na pressuposição da boa intenção e do terreno comum que cria a possibilidade da comunicação. A invenção democrática da tradição ocidental criou mecanismos que procuraram escapar a essas restrições/transgressões: a representação como substituto da democracia direta, os partidos políticos como aglutinação de vontades e veiculação de interesses, em suma a política como possibilidade de correção das assimetrias de poder criadas pelo modo capitalista de produção. Pelas mãos de Gramsci, já adiantado o século XX, formulações originárias de Maquiavel indicaram a formação de consensos fundamentados no dissenso: a hegemonia é essa figura contraditória da dominação que torna os interesses de algumas classes o terreno sobre o qual se produz o consentimento. Inspirado na A Ideologia Alemã, a correção operada pelo “pequeno grande sardo” tem a originalidade de abrir para as contra-hegemonias, não decretando a imutabilidade da ordem constituída, exatamente através de suas contradições.

Como já se assinalou, o liberalismo separou as instâncias do poder econômico e do poder político, numa operação de alta sofisticação, pela qual se evitava justamente a concentração de poderes característica do feudalismo. Um enorme avanço revolucionário. Mas ao mesmo tempo et pour cause retirou da arena pública os negócios privados: a teorização econômica pelas mãos de Smith, Ricardo, Mill, Bentham e todos seus sucessores, Weber mui posteriormente no terreno da sociologia, criou esferas autônomas de interesses, que se regularam a partir de seus próprios pressupostos. A cisão das ciências morais, das quais nasceu a economia política, apartou, desde o inicio, os procedimentos privados como pertencendo à esfera exclusiva dos próprios interessados, separando-os dos assuntos públicos. Uma contradição em termos, posto que o emprego da mão-de-obra publiciza imediatamente, pois que tem a ver com a liberdade do outro. Mas a ciência econômica asséptica proclamou a imunidade dos negócios privados ao olhar público e a impunidade das transgressões.

A construção das organizações dos trabalhadores, seus sindicatos e seus partidos políticos, opôs-se à ditadura da empresa e à não-publicização do conflito de interesses entre o capital e os trabalhadores, reinventando a democracia. Não à tôa, os partidos nascidos da classe trabalhadora denominaram-se, desde o princípio, social-democratas, e somente depois da obra de auto-construção dos próprios trabalhadores – o making do título da obra clássica de Thompson – estes se propuseram seus próprios objetivos, o socialismo e o comunismo. Apenas com a criação dos partidos da classe trabalhadora o principio da alternância no poder, o equivalente da formação ad hoc das maiorias e minorias da Ágora grega, chegou a ser real na política do Ocidente capitalista. Pode-se dizer sem nenhum sectarismo, que a democracia, tal como a conhecemos, foi praticamente reiventada pela luta de classes em sua forma política.

Mas foi preciso a maior crise da história do capitalismo, a Grande Depressão dos anos trinta, para que a publicização dos conflitos, até então assunto privado na relação capital-trabalho – inclusive na acepção de Marx, pois os trabalhadores são donos de sua força-de-trabalho – formasse uma nova arena pública de conflitos e transitasse para as instituições democráticas do Estado contemporâneo; o canal exclusivo do privado tornou-se insuficiente para processar a enorme contradição da formidável destruição de capital, e a publicização tornou-se estrutural à sua produção e reprodução. A regulação dos salários deixou de ser um atributo do mercado, mesmo que nele estivessem incluídos os sindicatos de trabalhadores, para constituir-se no principal objetivo das políticas econômicas do Estado moderno, e num trânsito ainda mais radical, elemento dessa regulação, as carências transformaram-se em direitos (François Ewald), desmercantilizando, parcialmente, o estatuto real da força-de-trabalho. Foi o ponto mais avançado da democratização alcançado nas sociedades capitalistas, tanto as do núcleo central quanto das periferias, estas ainda guardando marcas muito fortes de uma ainda não total mercantilização da força-de-trabalho, o que restringia a cidadania. A centralidade do trabalho nestas sociedades alargou o âmbito dessa democratização, ampliando o leque dos direitos. Então, as políticas ligadas ao trabalho universalizaram-se e projetaram-se para o conjunto das populações.

Da social-democracia ao neoliberalismo: a reprivatização da democracia

O movimento dialético que fundou o anti-valor como negação da mercadoria ampliou a força da organização dos trabalhadores até o ponto de disputar a destinação do excedente no capitalismo, medido pelos coeficientes da despesa social pública sobre o PIB. Hayek já havia antevisto esse momento em suas perorações de Mont Pélérin e no seu O Caminho da Servidão. Este foi o ponto de inflexão do conflito que, talvez por ironia da História, tenha começado também na Inglaterra. Mas como Marx havia dito De Te Fabula Narratur, a reversão espraiou-se por todo o sistema capitalista. Entrava em ação um movimento de re-privatização da democracia. Mrs. Tatcher guarda para si o duvidoso galardão de ter inaugurado esse período. Qual é a dinâmica desse movimento, de onde ele extrai sua força? Certamente ela não se deve ao estilo “bolo de noiva” dos trajes e penteados da Dama de Ferro, clone, aliás, de Sua Majestade.

Mas a formação do fundo público liberou o capital dos constrangimentos que lhe impunha a força-de-trabalho como mercadoria, e soltou as forças da caixa de Pandora da nova potência de acumulação. Pela negatividade, caía por terra definitivamente a teoria do valor-trabalho ricardiana, em que este comparece como um custo de capital. Uma acumulação de capital poderosa entrou em ação, a partir da combinação “virtuosa” das políticas anti-valor com a riqueza pública transformada em pressuposto da produção de valor. Os Trinta Anos Gloriosos foram a onda mais larga de expansão do capital, se quisermos usar por analogia os termos de Kondratiev. As formas técnicas da acumulação de capital ultrapassaram a materialidade das coisas para transformarem-se numa coisificação virtual, cujo poder de plasmar a vida humana ultrapassa todos os limites. É, ao mesmo tempo, um limite nunca antes alcançado do fetiche da mercadoria e da possibilidade de sua anulação. Trata-se de um conflito de classes de dimensões planetárias. Sua primeira expressão é de intensa regressividade e sua segunda dimensão depende inteiramente da capacidade que as classes sociais revelarem de apropriarem-se de sua potência, qual novo Prometeu.

A regressividade aparece radicalmente na dissolução da dimensão do tempo e leva de cambulhada o contrato mercantil como temporalidade, uma das bases para o estabelecimento do estatuto da mercadoria; para Marx, o valor é em primeiro lugar a quantidade de tempo de uso da mercadoria força-de-trabalho. A temporalidade é substituída por uma estrutura atomística do trabalho: trabalho em redes, trabalho em células, trabalho abstrato virtual levando ao paroxismo a intercambialidade entre os mônadas que carregam sua força-de-trabalho. Um poderoso aumento da produtividade do trabalho, multiplicado pelas novas formas técnicas da acumulação de capital, no centro não tanto suprime o emprego assalariado – estes são ainda a maioria – mas modifica-lhes o processo de trabalho. O outro lado dessa medalha é a dissolução de todas as identidades formadoras das classes, realizando o programa de Mrs. Tatcher: não há sociedade, somente indivíduos. Ultrapassando a Dama de Ferro: tampouco há indivíduos, apenas células simples, átomos de valor que, como no modelo atomístico, são recombináveis.

Deve ser dito, não apenas de passagem mas como elemento coetâneo e constitutivo dessa transformação, que a assimetria de poderes na democracia contemporânea exponenciou-se por uma potência “n2”. Em primeiro lugar, enquanto para os trabalhadores a estruturação atomística lhes diminui, anula e mesmo elimina suas organizações que um dia puderam contrarrestar a assimetria originária, para o capital as empresas agigantaram-se e operam também em redes, mundializaram-se. Os processos de concentração do capital estão no centro dessa tendência, enquanto a centralização opera a globalização. A relação de forças entre uma empresa como a Microsoft e seus trabalhadores não cabe em nenhum paralelograma; mesmo em relação aos Estados nacionais a assimetria tornou-se quase irreparável. Neste momento, a Microsoft desenvolve uma luta contra governos de Estados nacionais que ousaram utilizar sistemas livres de software, como o Linux, e até o Estado norteamericano enfrenta dificuldades para enquadrá-la nos termos das leis de proteção à concorrência.

O poder de classe das empresas aumentou, de novo é obrigatório repetir, de forma exponencial: elas controlam milhares de trabalhadores em todo o globo e, medido pelo critério da distribuição funcional da renda, entre 60 a 70% do PIB é renda do capital (lucros + juros), enquanto a era de ouro do Welfare a havia reduzido a menos de 50% fazendo a renda do trabalho alcançar mesmo 70% do PIB nos poucos casos dos países nórdicos.

Então a assimetria das relações entre o poder econômico e o poder político ampliou-se extraordinariamente, tornando quase caduca a separação das esferas. Com algum exagero – e esta é a forma de dizer-se o que a ciência ainda não sabe medir – provavelmente estamos de volta à concentração de poderes feudais: o econômico, o militar, o político, o social. Mais: as empresas são, agora, o poder político e na clássica divisão de poderes entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, assaltam e preenchem todos os lugares. Dois processos em curso, a desterritorialização da política e a juridificação da mercadoria, transformam as empresas nesse novo Senhor Feudal. Transcendem as fronteiras nacionais e mais: colocam-se no lugar dos poderes nacionais. FMI e OMC são os símbolos dessa desterritorialização. A Monsanto e sua posse das sementes transgênicas é o emblema da mercadoria que carrega consigo sua própria lei.

Transformam-se em operadores do social: aviso às ONGs que promovem este evento. Não por trás, mas à vista de todos, imprime-se aos programas e políticas sociais a marca do mercado. As ONGs que surgiram para vocalizar conflitos que um sistema petrificado não tinha como enunciá-los, são clonadas em organizações empresariais cujo objetivo é reducionista. Mesmo o mais bem intencionado programa tem como divisa o mercado: o pai que não mandar o filho à escola, tendo recebido uma bolsa-escola, perderá a bolsa. Ou a vida? Um juiz em São Paulo, nos dias que correm, ordenou ao Unibanco que arme sua própria milícia para cuidar das terras que são ocupadas pelo MST, e justificou que o Estado não tem recursos para tanto.

No terreno da cultura, então é quase covardia falar-se. Não há praticamente nenhuma atividade cultural que não seja patrocinada, e o patrocínio transforma-se em marca. O MacDonalds, como sempre, está à frente: seu mais recente bordão publicitário é “Amo muito tudo isso”, mas não é a comida o objeto do amor, que franceses, italianos, brasileiros, não somente entenderiam, como concordariam: é a marca, esse não-obscuro objeto do desejo, na interpretação de Buñuel-Isleide Fontenelle. Sem nenhum reproche: onde não há Banco do Brasil e Petrobrás, não há cultura.
A hegemonia, processo pelo qual o dissenso era um elemento insubstituível da estrutura do consenso, tornou-se transparente: a empresa assumiu esse lugar, tornou-se hegeliana. Ela é a sociedade civil. A empresa faz política e a grande empresa é a política. Que o digam todos os financiamentos de campanhas políticas e de políticos. Que o digam todos os conselhos onde só se assentam “representantes” das classes “produtoras”. No COPOM estão banqueiros, e sequer um simulacro de “representação” de trabalhadores. Como diz Paulo Arantes, já não há nem ideologia: o vício já não necessita render homenagens à virtude.

As conseqüências para a democracia são devastadoras. Se na tradição do Ocidente capitalista esta padeceu, desde seus primórdios, da contradição entre a maioria da pólis e a minoria do poder econômico, este subtraído às decisões da maioria e rigorosamente privatizado, esta contradição agigantou-se de modo a sufocar a democracia e quase anular a política. Aqui não se trata apenas da dimensão quantitativa dessa assimetria, já de si importante. Mas da nova qualidade dos processos da acumulação de capital. Esta suprime o outro do capital, o trabalho. Como mercadoria dimensionável, uma não-forma, apenas uma virtualidade.

As “afinidades eletivas” do trabalho são eliminadas e em seu lugar restam apenas as propriedades dos elementos atomísticos, recombináveis. A democracia, por certo modernamente ancorada na materialidade da divisão social do trabalho e na sua centralidade, é uma escolha ética. Por extensão, a sociedade já desapareceria nesse andamento, mas há mais: o capital, na forma da empresa, ocupa todos os lugares sociais, e então chega-se ao paradoxo da “sociedade anônima”. Não há mais sociedade, só há mercado. Este é a política e esta é o mercado. A pólis supõe uma forma, e o mercado é a não-forma. Ele é, por definição, a descartabilidade em ato, e antagônico, por isso, à institucionalização das formas. Sem o que não há política. E sem esta não há democracia. É do fundo do seu processo que o capital se coloca contra a democracia.

Todo esse processo gera o oposto do desencantamento do mundo à la Weber. As relações entre as classes parecem desaparecer, sublinhado, tornando impossível, na pista do mestre de Weimar, a ação racional com sentido. As relações tornam-se opacas, intransparentes. O fetiche alcança sua máxima expressão: é um mundo que opera com signos, sem contacto com o real. A política, neste caso, torna-se, necessariamente, um espetáculo, e deixa de ser operada pelos cidadãos. Não é de individualismo que se trata, mas da atomização. As classes sociais desfazem-se na bruma espessa das recombinações que parecem aleatórias, mas são, na verdade, dirigidas pelo “piloto automático” do capital.

O outro do falso: a democracia no Brasil

Todas as poderosas tendências interpretadas abatem-se com fúria nas periferias capitalistas, e o Brasil está profundamente imerso nelas. Tendo como lastro de sua atualização uma herança pesadamente anti-democrática, a sociedade brasileira é jogada no novo turbilhão por uma aceleração sem precedentes da acumulação de capital à escala mundial. Mundializando-se agora para tentar crescer economicamente, inviabiliza-se como nação, como economia e como sociedade. O tempo prestisimo do capitalismo mundial já havia obrigado a uma compactação formidável de tempos, desde os anos Trinta. Em cinqüenta anos de industrialização, trinta e cinco de regimes despóticos em que a correlação entre mundialização e regimes de exceção não necessita ser exagerada: taxas de crescimento de 8% ao ano. A dívida externa é a prova que não falta: a de que, nesta aceleração, a capacidade interna de acumulação será sempre insuficiente. O suplício de Sísifo é permanente, já que partimos da democracia grega: quanto mais tentarmos crescer, tanto mais deveremos. Nestas condições, a soberania é trocada, atualizando-se a história de Esaú, por um prato de celulares: 9% do PIB como pagamento de juros da dívida externa. A combinação do aumento da produtividade do trabalho e a financeirização, expressa pelas altas porcentagens das dívidas externa e interna sobre as despesas estatais e o PIB, mostram que em se fazendo um enorme esforço para seu pagamento, não aumentam nem o investimento nem o emprego. Então, a desterritorialização da política afirma-se taxativa e implacavelmente: as políticas são impostas pelas entidades supranacionais, e retiradas do âmbito da cidadania; 145 bilhões de reais para pagamento dos juros da dívida interna, isto é, cerca de 10% do PIB para um coeficiente de investimento que não chega a 20%; este serviço da dívida corresponde a uns 30% das despesas orçamentárias e é igual à soma de todos os gastos com políticas sociais!

Da plataforma da desigualdade histórica, anti-republicana e anti-democrática, uma nova e intransponível desigualdade se “alevanta” – desculpe Camões, por utilizar seu belo e arcaico verbo -: 60% da PEA se ocupa de tarefas “informais” – agora o substantivo não engana: destituído de formalidade, pelo bom Aurélio, sem-forma – onde sequer o contrato mercantil existe. Não juridificável, enquanto no ano de 2003 cresceu em 5% o número de novos milionários, sobre uma taxa de crescimento global de –0,2. Reclame para o bispo, dizia-se na sociedade colonial. E agora? Uma mercadoria não-juridificável: o que é ? O narcotráfico. Como se cobra uma dívida injuridificável? Pela violência física, Rocinha e Casa de Custódia.

A mundialização passou como um trator pelas relações penosamente construídas. Categorias inteiras sumiram e outras foram reduzidas à impotência, pela combinação da mundialização e da reestruturação produtiva. Os novos processos de trabalho, redes e células, des-socializaram as categorias reformatadas, para as quais o sindicato como organismo de classe simplesmente não existe. 20% de desempregados na maior cidade se desalentam na longa espera. Que classe social pode resistir à essa devastação?

A política se desfez como relação entre classes, antes que como institucionalidade: esta vai bem, dizem os otimistas, pois a ditadura saiu de cena há exatos vinte anos e desde então quatro eleições diretas para a presidência se sucederam, sem tropeços nem espasmos. Mas que resta da política como “reivindicação da parte dos que não têm parte”, como ensinou Rancière?

Um Estado de Exceção. Todas as políticas do Estado são de exceção: Bolsa-Família, por reconhecer que o salário é insuficiente, mas não pode ser aumentado; vale-gás, por reconhecer que o gás de cozinha é insubstituível, mas não se tem dinheiro para comprá-lo; bolsa-escola, para melhorar o salário insuficiente e lograr evitar a evasão escolar, que ao mesmo tempo pode punir o pai que não manda o filho à escola; fome-zero, por reconhecer que não se pode zerar a fome. Vale-transporte já vem de longe. E o salário-mínimo não pode aumentar porque arromba as contas da Previdência.
As relações entre as classes se esbatem contra o muro da enorme desigualdade. Nestes dias, a Folha de S.Paulo noticiou algo sobre a casa de conhecido banqueiro, no Morumbi, cuja obra está sendo embargada pela Justiça, por demanda de um vizinho. Metragem da obra sob embargo: 7.500 m2, equivalente a 200 casas/apartamentos populares de 37,5 m2. Não muito longe dali, outro poderoso Midas tem casa com teatro/cinema para 100 convidados. O que há de comum entre esses cidadãos, que pode fazê-los habitantes da mesma pólis? Nada, Péricles.

A ameaça à democracia no Brasil não vem da falta de institucionalização, da permanente tutela das Forças Armadas que foi um longo pesadelo talvez afastado para sempre, de insurreições e rebeliões, de partidos e formações políticas autoritárias, à esquerda como à direita – neste caso sempre foi a direita vivandeira de quartéis, à frente a triste UDN -. Agora ela provém do núcleo mais duro do capitalismo globalizado com sua incoercível tendência a avassalar o Estado, a dilapidar as relações entre as classes, a tornar intransponível a desigualdade, retirando o terreno comum de interesses e aspirações capaz de construir a comunicação e o consenso pelo dissenso; no passado, muitas das crises e das impossibilidades da democracia no Brasil deveu-se à disputa de sentido e da hegemonia sobre o projeto nacional. Agora, as burguesias abandonaram a utopia de uma nação e, portanto já não disputam nada com as classes dominadas: apenas deixam à incapacidade do Estado exercer o último de seus atributos, o poder de polícia, mesmo este fortemente abalado pela crise financeira do Estado, entre Rocinhas e Casas de Custódia. Parte importante das classes dominadas, sobretudo o operariado assalariado, devastado pelo desemprego e pela reestruturação produtiva, deixou apagar-se o fogo que roubou nas décadas da ditadura: agora contentam-se com diretorias de estatais e de fundos de pensão; o imenso exército “informal” não contesta as classes dominantes: trabalha na aparência de que seus adversários são os consumidores. Com o abandono da política pelas classes dominantes, os dominados são, paradoxalmente, enclausurados no âmbito da política institucional, dos partidos, e aprendem os malabarismos recorrentes da dominação. Mas a política “policial”, no dizer de Rancière, é irrelevante.

A política rola sem atritos, numa funda indeterminação de classes dado o terremoto do período neoliberal. Desta vez, tem-se tudo para falar-se propriamente de populismo, não como uma autoritária inclusão da classe operária na política, mas como sua exclusão. As lideranças populares mais eminentes vêem-se obrigadas a saltar os muros das organizações partidárias, que já não representam nada, e falar diretamente ao povo: é este tipicamente o caso da Venezuela, mas as experiências brasileira e argentina não estão muito longe disso: as políticas estatais de exceção são a impotência da política e a concretude do populismo como forma na ausência de formas. Um exercício do poder que não afeta em nada os interesses dominantes: brincam de política, ou de “fazer casinhas” na expressão de Vera da Silva Telles.

Muito pessimismo e argumentação economicista. A política e a democracia não são a negação do domínio do econômico, não se constituiram assim na história do último século? Perdão: aqui do que se trata é que a dinâmica do capitalismo globalizado anulou a autonomia das esferas. Além disso, na minha tradição teórica, a economia política é a anatomia da sociedade. Se quisermos fazer uma ciência social à la americana, sem determinações recíprocas entre as diversas esferas, poderemos até ver virtude numa “sociedade civil” que institui “segurança” nos morros do Rio e nas imensas Heliópolis – veja-se o sarcasmo da denominação grega – de São Paulo. Não é o meu caso; chamem Duda Mendonça. A obrigação da ciência social é perscrutar, com a paciência – e a indignação – de Sherlock Holmes a quem interessa essa desolação. Esse Pedro Páramo da democracia. Obrigado, Rulfo.

Fonte aqui